quarta-feira, setembro 20, 2006

quinta-feira, setembro 14, 2006

coração picante

Sem receita

Zé Miguel Wisnik

primeiro lenta
e precisamente
arranca-se a pele esse limite da matéria
mas a das asas melhor deixar
pois se agarra à carne
como se ainda fossem voar
as coxas soltas
soltas e firmes
devem ser abertas e abertas vão estar
e o peito nu
com sua carne branca
nem lembrar
a proximidade do coração
esse não!
quem pode saber como se tempera um coração?
limpa-se as vísceras
reserva-se os miúdos pra acompanhar
escolhe-se as ervas
espalha-se o sal
acende-se o fogo
marca-se o tempo
e por fim de recheio
a inocente maçã
que tão doce úmida e eleita
nos tirou do paraíso
e nos fez assim sem receita.

18 horas do dia ou da noite?

Anoitecer
Carlos Drummond de Andrade

É a hora em que o sino toca,
mas aqui não há sinos;
há somente buzinas, sirenes roucas, apitos
aflitos, pungentes, trágicos,
uivando escuro segredo;
desta hora tenho medo.

É a hora em que o pássaro volta,
mas de há muito não há passaros;
só multidões compactas escorrendo exaustas
como espesso óleo
que impregna o lajedo;
desta hora tenho medo.

É a hora do descanso,
mas o descanso vem tarde,
o corpo não pede sono,
depois de tanto rodar;
pede paz - morte - mergulho
no poço mais ermo e quedo
desta hora tenho medo.

Hora de delicadeza
gasalho, sombra, silêncio.
Haverá isso no mundo?
É antes da hora dos corvos,
bicando em mim, meu passado,
meu futuro, meu degredo;
desta hora, sim, tenho medo.